Como o desgoverno de anos resultou nos horrores dos últimos dias, desde
os bandidos degolados na penitenciária até a menina Ana Clara, de 6 anos, que
morreu queimada, vítima de ataque criminoso a um ônibus urbano
Em meio à crise, o governo Roseana Sarney encomendou lagosta. Criticado, substituiu o pedido por caviar. A governadora ao lado do ministro José Eduardo Cardozo entregou a administração dos presídios do estado ao amigo e sócio da família que, em 2002, a socorreu quando a PF encontrou 1,3 milhão de reais na sede da empresa de seu marido.
A vida da menina Ana Clara Santos Souza nunca deveria ter
cruzado a de W.T.F., o bandido conhecido como Porca Preta, que aparece na foto
abaixo empunhando um revólver. Aos 6 anos de idade, Ana Clara se preparava para
ir à escola pela primeira vez. Adorava vestir-se de princesa e andar de
bicicleta. Tinha acabado de dispensar as rodinhas da sua, e por esse motivo
andava muito orgulhosa. Era um universo sem ponto de contato com o mundo
sinistro habitado por Porca Preta. O bandido, de 17 anos, é um dos membros do
Bonde dos 40, a sanguinária facção criminosa que disputa o mercado de drogas de
São Luís e domina parte das cadeias do Maranhão à base de métodos que incluem a
decapitação de adversários e o estupro de suas mulheres. O que fez com que Ana
Clara e Porca Preta se encontrassem no último dia 3 não foi o azar, mas uma
combinação de duas tragédias: a situação nacionalmente calamitosa das prisões
brasileiras e a gestão particularmente funesta do problema pelo governo do
Maranhão, onde o descaso, o apadrinhamento e o descontrole elevaram o horror a
uma escala nunca vista.
Parte desse horror transbordou na semana retrasada para uma rua
da periferia da capital maranhense. Da prisão de Pedrinhas, partiu a ordem para
que bandidos atacassem ônibus em circulação na cidade em represália à entrada
da Polícia Militar na cadeia depois de mais uma rebelião sangrenta. Um dos
alvos escolhidos foi o carro em que haviam embarcado Ana Clara, sua mãe,
Juliane Souza, e a irmã de 1 ano, Lorane. Porca Preta foi o encarregado de
render o motorista, enquanto seus comparsas espalhavam gasolina no interior do
veículo. Juliane, internada em estado grave, contou à mãe o que houve em
seguida. Segundo disse, ela e as filhas já estavam na porta de entrada quando alguém
riscou um fósforo e o ônibus explodiu em chamas. As três foram atingidas.
Juliane atirou-se sobre a caçula e, com as costas e os braços queimando,
rastejou com ela por baixo da roleta em direção à porta de trás. Achava que a
filha mais velha a seguia. Ana Clara, no entanto, havia se desgarrado e
permaneceu na parte da frente, onde as chamas ardiam altas. Com 95% do corpo
queimado, ela ainda conseguiu sair do carro. São excruciantes as imagens feitas
pelas câmeras de segurança do ônibus, que mostram a menina perambulando em
choque, sozinha, com o corpo em chamas. Ana Clara morreu na última
segunda-feira.
“O Maranhão vai muito bem”, disse três dias depois a governadora
do estado, Roseana Sarney, em entrevista coletiva. “Um dos problemas que estão
piorando a segurança é que o estado está mais rico, o que aumenta o número de
habitantes.” A entrevista girou em torno da série de motins no Complexo de
Pedrinhas, que deu origem ao ataque ao ônibus em que viajava Ana Clara e, em
2013, resultou em sessenta presos mortos, ao menos cinco degolados. Roseana
disse ainda que o que houve em Pedrinhas foi “inexplicável”. A governadora
conseguiu errar em cheio em todas as declarações. Primeiro, o Maranhão, estado
que sua família governa há cinco décadas, não vai nada bem. Tem o segundo pior
índice de analfabetismo do Brasil e a pior renda per capita. Seu IDH só perde
para o de Alagoas, e a mortalidade infantil é a segunda maior do país. Depois,
o que aconteceu em Pedrinhas está longe de ser inexplicável.
A administração do complexo, como a de todas as prisões do
estado, foi terceirizada para duas empresas - uma delas pertence a um velho
apaniguado dos Sarney: Luís Cantanhede Fernandes. Sócio de Jorge Murad, marido
da governadora, ele foi o homem que, em 2002, saiu em socorro da então
candidata à Presidência Roseana depois que a Polícia Federal encontrou 1,3
milhão de reais em dinheiro vivo no escritório da Lunus, consultoria dela e de
Murad. Na tentativa de livrar do naufrágio a candidatura de Roseana, Cantanhede
assinou às pressas um contrato fajuto de empréstimo para justificar a origem da
dinheirama. No ano passado, sua empresa, a Atlântica Segurança - juntamente com
a VTI, de Fortaleza -, recebeu 71 milhões de reais para cuidar das cadeias do
Maranhão. Nenhuma das duas tinha experiência no ramo.
A decisão de contratar empresas como essas para cuidar de um
setor tão explosivo não chega a surpreender, tendo partido de uma governante
cuja família há tanto tempo se dedica a cuidar com desvelo de assuntos de seu
próprio interesse e de seus amigos. O que escandaliza no episódio é o fato de
esses contratos terem sido mantidos mesmo diante dos resultados colhidos. O
inferno de Pedrinhas supera com folga tudo o que já se viu no trágico cenário
das cadeias brasileiras.
Na semana passada, a reportagem de VEJA percorreu cinco das oito
unidades do complexo - com capacidade para 1 500 presos e população de 2 700.
Nas celas de 6 metros quadrados espremem-se até dez homens, obrigados a
disputar espaço com os ratos, atraídos pelos detritos acumulados em pilhas por
todo canto. No pátio de uma das cadeias do complexo, o esgoto a céu aberto se
mistura a montes de entulho e mato crescido. Algumas paredes dão a impressão de
que poderiam ser derrubadas com um chute, de tão decrépitas.
Mas a parte das instalações em Pedrinhas ainda é melhor do que a
de segurança. Os monitores encarregados de revistar os presos e administrar as
visitas têm treinamento de uma semana e salário de 900 reais, menos de um terço
do que ganham os agentes penitenciários do estado. Para aferir a eficiência do
modelo, basta olhar a foto do arsenal apreendido em uma recente invasão da
polícia: mais de 300 facas, facões e canivetes, além de munição para pistolas.
Celulares circulam abertamente, e a cantina do complexo - que vende até cerveja
- está sob o controle dos detentos. Os líderes das duas facções reinantes - o
Primeiro Comando do Maranhão e o Bonde dos 40 - decidem quem vive e quem morre
dentro da cadeia. E morre-se muito lá. No fim da matança mais recente, em 17 de
dezembro, os presos se encarregaram de produzir e divulgar imagens
estarrecedoras. Um dos vídeos mostrava corpos sobre o chão cobertos de
ferimentos e sem alguns pedaços da pele. Três deles tiveram a cabeça cortada e
elas foram colocadas lado a lado. Em uma das fotos que constam de trechos
inéditos do relatório feito pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), ao qual a
reportagem de VEJA teve acesso, um detento separa do corpo uma cabeça
decapitada e a segura pelos cabelos, como um troféu. Em outra, dois homens chutam
essa mesma cabeça de um lado para o outro, como se estivessem jogando futebol.
O relatório inclui ainda a foto de pedaços de um corpo encontrado no lixo de
Pedrinhas e dispostos sobre a bancada do Instituto Médico-Legal de São Luís -
mais uma provável vítima do método conhecido em Pedrinhas como “picadinho”,
destinado a fazer “desaparecer” corpos.
O acirramento das disputas entre as facções maranhenses e o
banho de sangue que ele produziu no interior das penitenciárias não pegaram de
surpresa o governo de Roseana Sarney. Inquéritos policiais instaurados em 2008
já indicavam alguns dos horrores em curso nos presídios. Em 2010, o CNJ fez a
Roseana uma série de recomendações para conter a violência nas cadeias.
Repetiu-as, em vão, em 2011. Em 2012, o então presidente do Supremo Tribunal
Federal, ministro Carlos Ayres Britto, pediu à governadora que recebesse
representantes do CNJ. Foi ignorado. Nos últimos dois anos, a Secretaria de
Direitos Humanos do governo federal recebeu 157 denúncias sobre o sistema
penitenciário do Maranhão, das quais 46 sobre tortura. “Inexplicável”,
governadora?
Cadeias são um mal necessário. Prender bandidos tem, sim,
influência direta na queda da criminalidade. Essa correlação já havia sido
verificada em diversos trabalhos internacionais. No ano passado, o Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) publicou um estudo feito em mais de 5 000
municípios de todos os estados brasileiros com dados de nove anos. O trabalho
concluiu que, para cada elevação de 10% no número de presos, o de assassinatos
diminui 0,5%, em média. Escrevem os pesquisadores: “Os resultados comprovam que
prender mais bandidos e aumentar o policiamento são armas válidas para reduzir
a taxa de homicídios, independentemente do que ocorra com outras variáveis socioeconômicas”.
Acontece que, desde o fim do século XVIII, o suplício deixou de
ser uma prática aceitável. A punição aos criminosos perdeu a característica de
“vingança social” para incorporar a de “reforma do indivíduo”. O objetivo
passou a ser prender para evitar novos crimes e reduzir a reincidência. À luz
desses conceitos, confinar o preso em jaulas onde não se deixaria um animal é,
inclusive, contraproducente, como atesta um estudo recente da Itália. Ele
analisou a vida em liberdade de 25 000 presos soltos em 2006 para abrandar o
superlotado sistema carcerário daquele país. Os que tinham saído de presídios
com uma alta taxa de mortes eram mais propensos a cometer novos crimes. Na
fórmula matemática do estudo, o crescimento de 1 ponto nas mortes per capita
atrás das grades aumenta em 4,2% a probabilidade de o criminoso ser pego
novamente em delito. Mais do que ineficaz para os propósitos a que se destina,
o tratamento degradante dos sentenciados extrapola o contrato firmado com a
Justiça. Aos condenados, reserva-se a pena de reclusão, não o inferno.
Para o Palácio do Planalto, o governo do Maranhão está
despreparado para resolver sozinho a crise no sistema carcerário estadual. A
gestão sofreria de “autismo” e de “completo distanciamento da realidade”, como
teria demonstrado a licitação para compra de lagosta e outros quitutes,
suspensa depois de revelada pela Folha de S.Paulo e substituída por outra...
que solicita caviar e uísque escocês. Embora assessores de Dilma Rousseff digam
que Roseana Sarney perdeu capital eleitoral, a presidente não pretende
dispensar o apoio da governadora e de seu pai, o ex-presidente do Senado e
cacique peemedebista José Sarney. Foi por isso que a ministra dos Direitos
Humanos, Maria do Rosário, evitou defender a intervenção federal no estado e
foi por esse motivo também que, diante de tanto sangue derramado em território
maranhense, Dilma limitou suas manifestações a uma lacônica mensagem postada na
sexta-feira no Twitter. O texto diz que ela acompanha “com atenção a questão da
segurança no Maranhão”. Ana Clara não andará mais de bicicleta, não se vestirá
de novo de princesa nem irá à escola neste ano pela primeira vez. Mas é
tranquilizador saber que a presidente acompanha tudo com atenção. E que o
Maranhão vai muito bem, obrigado.
Fonte: Veja - Reportagem - Alexandre Aragão, Pieter Zalis, Cintia Thomaz e Daniel
Pereira - Leslie Leitão e Alana Rizzo - Marlene Bergamo/Folhapress
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